A Cartuxa de Ivorá é a primeira da América Latina, à qual seguiu a de São José, em Córdoba, na Argentina. Esta data tão singular parece-nos propícia a que nossa Comunidade paroquial tenha um conhecimento mais profundo do carisma que o Espírito Santo suscitou na Igreja quando moveu São Bruno a fundar nossa Ordem.
Nesta Cartuxa, próxima das comunidades de Três Mártires e de São João Maria Vianney, como em todas as demais Casas da nossa Ordem espalhadas pelo mundo afora, procuramos seguir Cristo, no silêncio da solidão, em sua vida oculta de Nazaré, junto de Maria e José; buscamos “viver ocultos com Cristo em Deus” (Cl 3,3), “que nos atraiu ao deserto para nos unir a si em íntimo amor” (Estatutos Cartusianos 1,4; cf. Os 2,16).
Nossa vida, como afirmava o Beato Papa Paulo VI, só na Fé pode ser compreendida. A vida eremítica, ou solitária, vivida em comunidade, nasce, pelo Mistério de Cristo, do próprio coração da Santíssima Trindade que, sendo Um só Deus, está formada por Três Pessoas divinas.
É a Igreja, como Esposa de Cristo, que sente o chamado interior a viver na intimidade com o Esposo e, por Ele, com Ele e n’Ele, na intimidade com o Pai, no amor do seu Divino Espírito. Daí que formamos uma comunidade que, por Cristo, com Cristo e em Cristo, vai em peregrinação ao Pai, na unidade do Espírito Santo. Assim o confessamos em cada Santa Missa que participamos.
Falando do lugar que deve ter a vida contemplativa no conjunto do Povo de Deus, o Concílio Vaticano II afirma:
“Uma vez que a vida contemplativa pertence à plenitude da presença da Igreja, é preciso que ela seja instaurada por toda a parte nas novas igrejas” (Ad Gentes, nº 18). Damos, pois, graças à Divina Providência por essa Cartuxa que, embora fisicamente presente em Ivorá, torna-se “plenitude de presença” para todo o Brasil.
Para compreender melhor o carisma eclesial da Cartuxa, vamos dividir aqui o nosso propósito em quatro pontos:
1. Informar sobre a Ordem Cartusiana.
2. Dizer como nasceu a Cartuxa de Ivorá.
3. Descrever a vida Cartusiana.
4. A presença de Maria em nossa vida.
1. A Eremítica Ordem Cartusiana
Entre as comunidades contemplativas encontra-se a Ordem Cartusiana. Ela surgiu, inserindo-se na tradição do monaquismo dos Padres do Deserto, com o desejo de revitalizar a plena orientação na busca do Absoluto, por meio do louvor divino, da separação do mundo e da penitência em benefício de toda a Igreja. Esse programa de vida não tem outro fim senão fazer que “convenientemente instruído e formado o nosso homem exterior, o homem interior busque mais ardentemente o próprio Deus, mais prontamente O encontre e mais plenamente O possua. Assim, com o auxílio de Deus, poderemos chegar à caridade perfeita, que é o fim da nossa Profissão e de toda a vida monástica, e obter a eterna bem-aventurança.” (Estatutos Cartusianos 1,4).
Nosso fundador, São Bruno (†1101), foi aquele “servo prudente” que Deus escolheu para ser o pai e modelo da nossa família monástica. Com mais seis companheiros, teve a missão, sem o pretender, de “devolver à vida contemplativa a sua pureza e esplendor primitivos” (Papa Pio XI, Constituição Apostólica Umbratilem, 08.07.1924). Isto acontecia em 1084, nas montanhas de Chartreuse (que em português traduz-se por “Cartuxa”), nos Alpes Franceses.
A pureza do ideal contemplativo de Bruno e o testemunho da sua vida são simultâneos. Embora extraordinariamente dotado para servir à Igreja no apostolado externo, como cônego Decano da Catedral de Reims e Reitor da nascente Universidade – diríamos hoje – desta cidade, compreendeu que Deus lhe pedia outro serviço: a entrega de si mesmo ao “único necessário” aos pés do Mestre (cf. Lc 10, 38-42), como Maria de Betânia.
Uma extraordinária bondade e afabilidade envolveu toda a sua vida, mesmo em momentos bem difíceis, até se converter em nota característica do seu espírito, reflexo da sua alma. A bondade de Deus é o atributo divino que mais intensamente penetrou no seu coração. E dessa bondade nascia sua harmonia interior, refletida no seu exterior, na paz de sua “igualdade de ânimo”. Fascinado por Deus, ele pôde difundir o amor divino nos corações daqueles com quem tratava, conquistá-los para Deus, dispô-los à entrega total ao Senhor pelo caminho do Deserto interior.
É luminosa a lembrança que dele nos deixou Santo Hugo (†1134), o Bispo que o acolheu na sua Diocese de Grenoble: “Bruno era um homem célebre pela sua ciência e piedade; um modelo de virtude, ponderação e perfeita maturidade; … um homem de coração profundo” (Vita S. Hugonis, PL 153,770). Recentemente, o Papa Francisco, ao escrever aos Cartuxos por motivo dos 500 anos da canonização de São Bruno, dizia dele: “Dou graças a Deus por esta bela e irradiante figura, cuja vida, impregnada do Evangelho, segue inspirando homens e mulheres desejosos de seguir de maneira particular a Jesus orante e que se oferece para a salvação do mundo… Hoje ainda, pela densidade de sua existência, dedicada toda ela a uma procura assídua de Deus e à comunhão com Ele, segue sendo uma estrela brilhante no horizonte, para a Igreja e para o mundo” (Carta ao Ministro Geral da Ordem aos 03.06.2014).
A obra de São Bruno foi consolidada e organizada pelo seu quinto sucessor Dom Guigo I († 1136), o qual redigiu os chamados “Costumes da Cartuxa”, de modo que esse gênero de vida religiosa difundiu-se rapidamente por toda a Europa e agora atingindo a América e o Extremo Oriente, na Coreia do Sul.
Desde os inícios, uma grande veneração uniu todos os Cartuxos ao seu pai e Fundador, tendo nele a regra viva do carisma que lhes deixava em herança, baseado na procura das “coisas do alto” (Cl 3,1), “para ir em busca do eterno”, como dizia o próprio Bruno a um amigo (Carta a Raul,13).
2. Como nasceu a Cartuxa de Ivorá
Nos anos 80, Dom Ivo Lorscheiter (1927-2007), então Bispo de Santa Maria e Presidente da CNBB, informado do aumento de vocações cartusianas brasileiras pelo Pe. Prior da Cartuxa de Évora (Portugal), animou-se a pedir à Ordem da Cartuxa a sua presença no Brasil através de uma carta conjunta com todos os Bispos gaúchos.
Eram anos difíceis não só para o nosso país, mas também para a Igreja inteira. Isto fazia com que a esperança duma fundação no Brasil não fosse muito imaginável, contudo, os planos da Providência eram favoráveis. O Capítulo Geral da nossa Ordem, em 1983, aproveitando o IX Centenário da Fundação da Cartuxa, acolheu benignamente tal pedido, aprovando a ideia de implantar o carisma de São Bruno na América Latina.
Depois de buscar um terreno apropriado em diferentes lugares (Pelotas, Caxias do Sul etc.), foi escolhido um que foi desmembrado da “Granja Medianeira”, na Paróquia de Ivorá, Diocese de Santa Maria, tendo sido oferecido pela Mitra Diocesana. A feliz invocação “Medianeira” foi dada como nome à futura Cartuxa e no dia da Apresentação de Nossa Senhora, 21 de novembro de 1984, fundou-se este novo Deserto com um edifício provisório, a Casa de Fundação.
As obras da nova Cartuxa não atingiram seu termo senão pelo ano 2000. Para a construção material e espiritual, contou-se com o apoio da contínua companhia de Dom Ivo Lorscheiter, seu verdadeiro Pai Espiritual, e a fraterna assistência de Dom Paulo Moretto, por então Bispo de Caxias do Sul, homem de oração e de alma verdadeiramente contemplativa e cartusiana.
3. A vida dos monges cartuxos
A consagração radical a Deus no silêncio da solidão constitui o carisma do monge cartuxo, e esta é a causa pela qual a Igreja dispensa-o de todo ministério pastoral (cf. CIC 674). Desse modo, todos os filhos e filhas da Igreja são favorecidos com esta vocação, na oração contínua (cf. Lc 18,1), sendo esta procurada pelos monges de todos os tempos, encorajados estes pelo Apóstolo Paulo (cf. 1Ts 5,17).
A procura da face do Senhor na solidão só tem sentido quando se deseja responder ao seu convite no fundo da alma de cada um de nós, que formamos a Esposa de Cristo, a Igreja; de tomar consciência da presença gratuita de Deus nela; de viver para Ele, porque só Deus merece a entrega incondicional do ser humano, criado à sua imagem e semelhança.
A suprema razão da existência do cartuxo no Povo de Deus radica nos inalienáveis direitos de Deus que, como nosso Criador e Pai, é digno de que alguns dos seus filhos vivam exclusivamente para Ele, consagrados ao seu amor, louvor e adoração, em imediata relação com o Deus vivo e pessoal. Este era um pensamento que repetia continuamente Dom Ivo, dizendo: “Sou feliz de que em nossa Diocese existam duas comunidades nas quais seu único ministério seja o amar a Deus sobre todas as coisas”, acrescentando outras vezes: “Todos meus empreendimentos sociais estão sustentados pela oração das Carmelitas e dos Cartuxos”.
A resposta de fé, esperança e caridade com a qual o crente se abre à revelação e à comunhão do Deus vivo, em Jesus Cristo no Espírito Santo, deve ser no Povo de Deus um desejo primordial, e este é o desejo que os monges Cartuxos assumem em estreito vínculo com toda a comunidade eclesial.
É bom aqui não esquecer que a Igreja mesma é contemplativa em seu coração. Aí reside a essência de quanto Ela crê, espera, ama e faz. Tudo na Igreja, Esposa de Cristo, deve ir encaminhado à contemplação do Esposo, como diz o Concílio Vaticano II (cf. Sacrosanctum Concilium, nº 2).
Com essa radical entrega a Deus, os Cartuxos desejam lembrar desde sua solidão ao mundo inteiro a transcendência divina, estendendo com sua oração e imolação diária a redenção de Cristo a todos os homens (cf. Cl 1,24). Assim, eles fazem presente o Reino futuro, de modo que a vida de oração e adoração se torna a mais efetiva atividade apostólica, segundo as palavras de Cristo: “Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (Lc 10,42). A vida cartusiana dá testemunho assim do Absoluto num mundo seduzido pelo efêmero, dando a primazia ao Amor, numa humanidade esquecida d’Ele. A solidão do Deserto não isola o monge da communio do Povo de Deus; ao contrário, coloca-o no coração da Igreja, como dizia Santa Teresinha (cf. História de uma alma, Ms. B, 3vº). Nesse sentido, o ensinamento do Concílio não apresenta dúvidas: “Os Institutos de vida contemplativa com suas orações, obras de penitência e tribulações têm importantíssimo papel na conversão das almas. Pois Deus é quem manda operários à sua messe, quando se lhe suplica. Abre a alma dos não-cristãos para ouvirem o Evangelho e lhes fecunda nos seus corações o Verbo da salvação” (Ad Gentes, nº 40).
Passando agora a descrever o dia-a-dia numa Cartuxa, partirmos do pressuposto de que o cartuxo é um eremita (solitário), que tem uma parte de vida como cenobita (em comum). É uma comunidade de solitários. São Bruno escolheu para a vida dos seus filhos as vantagens da vida solitária e as da vida em comum.
As reuniões comunitárias fomentam o espírito de família e estreitam os laços que unem a todos “em Cristo”; assim como fazem participar dos frutos da caridade fraterna, contando sempre com o apoio dos irmãos na mesma vocação.
Durante a semana, os Cartuxos reúnem-se só três vezes por dia para os Ofícios conventuais: Para a Vigília noturna, à meia-noite (das 00h até as 02h30 ou 03h); para a Santa Missa, de manhã e para as Vésperas, ao cair da tarde. A Cartuxa, desde a época da fundação, tem um rito litúrgico-eremítico próprio, renovado após o Concílio Vaticano II, o qual é apropriado para esta especial vocação, na qual “o monge, que tende incessantemente para a união com Deus, realiza em si mesmo, todo o significado da Liturgia” (Estatutos Cartusianos 41,4).
Particularmente na Vigília noturna, tudo se desenvolve num ambiente de silêncio e simplicidade, num contato vivo com o louvor divino e a sua Palavra, mas principalmente na celebração da Eucaristia, que é “centro e cume da nossa vida e viático do nosso êxodo espiritual que, no deserto, nos reconduz ao Pai através de Cristo” (Idem. 3,7). A última reunião do dia, as Vésperas, terminam com o canto da Salve Rainha, súplica comunitária à Mãe e Medianeira de todos os remidos.
Aos domingos há mais reuniões fraternas. São dias especialmente comunitários: quase todas as Horas do Ofício Divino cantam-se na igreja conventual; o almoço é no refeitório (fora disso, o monge sempre come em sua cela) e tem-se uma recreação fraterna; estes elementos vêm completar o aspecto cenobítico do Dia do Senhor. Além disto, os monges têm um passeio semanal pelo campo, que complementa a convivência familiar.
Sem dúvida a vida cartusiana é austera, nela se prescinde dos confortos desnecessários. Há mais de nove séculos ela está prudentemente organizada considerando as necessidades da natureza e de cada pessoa. Não supõe nada de extraordinário, mas converte-se numa ajuda positiva, numa fonte de profunda alegria, pois damos com generosidade o nosso tudo Àquele que, antes, deu-se a nós totalmente.
Na Cartuxa, segundo o atrativo interior de cada jovem candidato que bate à nossa porta pedindo admissão, pode-se aspirar a um regime com mais tempo de vida na cela, ou menos, segundo a graça e as aptidões de cada um. Deste modo, alguns monges têm o seu tempo de trabalho e estudo na própria cela, enquanto outros têm seus trabalhos em lugar diferente da cela, nos serviços habituais da Casa. Os primeiros, “por uma prova insigne da bondade de Deus, estão destinados para o sagrado ministério do altar” (Estatutos Cartusianos 3,8), enquanto os outros monges vivem especialmente o seu sacerdócio batismal nos trabalhos manuais, “consagrando o mundo à glória do Criador e pondo as coisas da natureza ao serviço da vida contemplativa” (Idem. 11, 3). Esta é a diferença essencial entre as duas modalidades de nossa única vocação: a dos Padres e a dos Irmãos.
Ainda que a distribuição do tempo seja praticamente igual em todas as Cartuxas do mundo, colocamos aqui o horário da de Ivorá:
00.00 Vigília Noturna comunitária.
02.45 Aprox. – Repouso.
06.30 Levantar. Oração de Prima. Oração em solidão.
08.00 Missa Conventual.
09.00 Oração de Tércia. Lectio divina. Estudo. Trabalho.
12.00 Oração de Sexta. Refeição. Tempo livre.
14.00 Oração de Noa. Estudo. Trabalho. Leitura.
17.30 Oração de Vésperas.
18.00 Refeição. Oração em solidão.
19.30 Oração das Completas. Repouso.
23.45 Levantar para a Vigília.
Acrescentamos que, o horário é para o monge e não o monge para o horário, por isto sempre existe a possibilidade de adaptação dos tempos que não são consagrados à oração na igreja conventual.
A disposição dos diferentes edifícios de uma Cartuxa obedece às coordenadas do carisma eremítico vivido pelos filhos de São Bruno desde o começo da Ordem. Entorno do pequeno claustro da igreja conventual encontram-se algumas outras dependências da comunidade de solitários, como refeitório e capelas e, a ambos os lados deste os recintos eremíticos, as celas: o chamado Grande Claustro dos monges sacerdotes ou que a ele se preparam, e o Claustro dos Irmãos, ou monges laicos, que o tempo do seu labora o tem em silêncio fora de suas celas eremíticas.
4. Maria e os monges Cartuxos
Para concluir, podemos dizer que a presença de Maria é particularmente forte na Cartuxa. Toda a vida do cartuxo decorre sob a proteção de tão boa Mãe. Como membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja, o cartuxo sente por Maria um amor filial, participação e prolongamento do que Jesus teve e tem pela sua Mãe. E, além da ternura maternal, o Cartuxo encontra em Maria o modelo da sua entrega à vida contemplativa.
Com efeito, Nossa Senhora é o modelo da criatura dedicada e unida sempre a Deus. E, como Mãe de todos, tem a missão de formar e de tornar o monge semelhante a Jesus. Daí o fato de ser chamada desde há muitos séculos: “Mãe singular dos Cartuxos”. Ela impregna a espiritualidade cartusiana de sua presença através duma vida que responde à mensagem que Ela pedia em Fátima: oração e penitência por toda humanidade.
Pedimos à Mãe da Igreja cumprir o que o Vaticano II pede aos religiosos: “Procurem os religiosos com empenho que, por seu intermédio, a Igreja revele cada vez mais Cristo aos fiéis e infiéis; Cristo orando sobre o monte, anunciando às multidões o reino de Deus, curando os doentes e feridos, trazendo os pecadores à conversão, abençoando as criancinhas e fazendo o bem a todos, obediente em tudo à vontade do Pai que O enviou” (LG,46).